Encontrar algo útil no meio da tralha é parte essencial do trabalho de um historiador.

sábado, 15 de junho de 2013

Um extremo cansaço de se ser infeliz

O interesse historiográfico do estudo da vida de António Fernandes Roquete (1906-1995) reside em boa parte na diversidade de meios onde o biografado se moveu e na abundância de temas e períodos que o caso pessoal de Roquete pode contribuir para compreender melhor. No entanto, seria errado analisar Roquete como um mero exemplo de determinados grupos e épocas, sem ter em conta as suas características individuais e a singularidade do seu percurso. Para lá do facto de ter sido simultaneamente um desportista célebre e um elemento importante na hierarquia das polícias políticas da Ditadura Militar e do Estado Novo, a sua vida foi marcada por numerosas contradições.

Assim, embora o apelido “Roquete” estivesse associado, no início do século XX, a uma família da elite local (em Salvaterra de Magos) e nacional (dela provinham vários dos fundadores do Sporting), António foi pobre e inscrito como aluno da Casa Pia de Lisboa. Apesar desse baixo estatuto económico-social, tornou-se, através do desporto, uma personalidade conhecida a nível nacional e mesmo internacional. Guarda-redes do Casa Pia Atlético Clube em anos nos quais os “gansos”, depois do sucesso inicial, perderam terreno para os seus rivais lisboetas, Roquete projectou-se como um dos ídolos do futebol português e foi por várias vezes o único jogador do CPAC convocado para a selecção nacional. Após aceitar uma proposta para jogar num clube do Funchal, deixou a Madeira sem ter participado num único encontro. Futebolista num tempo onde vigorariam, supostamente, em Portugal o amadorismo puro e o “amor à camisola”, recebeu dinheiro para jogar e foi abordado por clubes estrangeiros. Possuindo a vivência de partidas em grandes recintos a abarrotar de público e competições como o torneio olímpico de futebol, Roquete mostrou o seu talento nos campos com escassas condições de pequenos clubes de Elvas e Valença. A formação obtida na Casa Pia, em especial o conhecimento de línguas estrangeiras, e a experiência de viagens ao Brasil e a vários países europeus diferenciavam-no, no início da década de 30, da maioria dos subordinados do capitão Agostinho Lourenço na polícia política. A abundância de fotografias  de Roquete publicadas na imprensa durante os anos 20 e 30 contrasta com a dificuldade que os investigadores actuais sentem em encontrar imagens dos responsáveis das polícias políticas anteriores à PVDE. Admirado por casapianos e outros adeptos do futebol, Roquete converteu-se em alvo do ódio dos opositores à ditadura e ao colonialismo. Amigo e protegido de Cândido de Oliveira, foi acusado de colaboração na prisão e espancamento do treinador, antes de participar, anos mais tarde, em homenagens públicas a Cândido. Ao fim de décadas como servidor do Estado na repressão dos crimes políticos, deixou a polícia e iniciou uma carreira no sector privado (embora as fronteiras entre o Estado e os agentes económicos, no Moçambique colonial, estivessem longe de ser rígidas). Aparentemente, António Roquete escapou à passagem pela prisão que o 25 de Abril implicou para muitos dos antigos membros da PIDE/DGS. Para estes, findos os problemas com o sistema de justiça política, seguiu-se frequentemente um percurso na obscuridade e marcado pelo desprezo colectivo, enquanto Roquete continuou a ser um herói do Casa Pia e, pouco antes de morrer, foi homenageado como “glória” do desporto português, sendo a sua morte assinalada pelo meio futebolístico.


Teria a história portuguesa evoluído da mesma forma se António Roquete não tivesse existido? Provavelmente sim, mas, se não fosse a exibição espantosa do guarda-redes casapiano, Portugal teria sido derrotado pela Argentina no jogo disputado em 1 de Abril de 1928 no Lumiar.

Sem comentários:

Enviar um comentário