Encontrar algo útil no meio da tralha é parte essencial do trabalho de um historiador.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A estupidez não tem de magoar imediatamente



No dia 25 de Novembro, foi lançado no ambiente opressivo da Fnac Chiado o novo livro de Fernando Rosas, Salazar e o Poder. A Arte de Saber Durar (Tinta da China, 2012), que procura responder a uma questão (apenas) aparentemente simples: porque durou o Estado Novo tantos anos? Para lá de factores como os apoios que Salazar recebeu (da Igreja, das elites económicas, etc.) e a violência preventiva e repressiva, Rosas destaca a relevância da obediência das Forças Armadas ao regime, mesmo nas fases mais difíceis para este. O controlo das chefias militares que Salazar assegurou a partir da década de 30 foi essencial para a estabilidade da ditadura (que cairia por acção dos oficiais intermédios), até porque era precisamente a força armada que faltava às oposições para derrubar o Estado Novo. 

A propósito dos episódios que, durante o lançamento do ensaio, Fernando Rosas e José Pacheco Pereira contaram com o objectivo de retratar a omnipresença do medo no Portugal de Salazar, e tendo em conta quer o desenvolvimento que a literatura autobiográfica (como as obras de memórias editadas pela Alêtheia) conhece actualmente quer a riqueza do percurso político e profissional de Rosas, seria interessante se o historiador resolvesse escrever sobre a sua experiência pessoal, ou pelo menos parte dela. No entanto, a falta de aptidão para a biografia que Rosas confessa na introdução de Salazar e o Poder e a afirmação de Pacheco Pereira segundo a qual a obra do presidente do IHC é uma história não propriamente narrativa mas sobretudo problematizante tornam pouco provável a hipótese de Rosas abordar a sua própria vida como objecto de estudo.

domingo, 18 de novembro de 2012

Lénine já nos pôs nas mãos a chave do problema



Operação Mar Verde (Caminhos Romanos, 2012), de António Vassalo, é um álbum de BD que narra, como o título indica, a operação militar portuguesa de ataque a Conakry em 22 de Novembro de 1970. Alpoim Calvão, o estratega e comandante da operação, é o herói do livro. António Vassalo (que se auto-retrata na p. 4) conheceu Alpoim na Guiné em 1964, embora já tivesse concluído o serviço militar aquando da Operação Mar Verde. A reconstituição desta é feita com base nas memórias de Alpoim e nos testemunhos prestados a Vassalo pelos participantes na acção, que o desenhador (na introdução, Vassalo explica ter desejado desde a infância ser um guerreiro do Império como os heróis da História portuguesa, concretizando o sonho na guerra colonial) considera ter sido um claro sucesso. As 28 pranchas a preto e branco dão um tom épico à luta contra o ditador guineense Sekou Touré, que para frustração de Alpoim permaneceria no poder.

O trabalho de António Vassalo constitui uma nova abordagem da guerra de 1961-1974 pela banda desenhada, onde o conflito africano serviu recentemente de inspiração a Cinzas da Revolta (Asa, 2012), com argumento de Miguel Peres e desenho de João Amaral (Jhion). 

sábado, 17 de novembro de 2012

Conserva inabalável a fé nos destinos do clube



O livro Eu Fui Agente da DGS-PIDE (Ecopy, 2011), de Emídio Oliveira, é especialmente valioso pela raridade, entre os testemunhos existentes de indivíduos visados pelo processo de justiça política na transição para a democracia, de depoimentos escritos por antigos funcionários da polícia política. Emídio José Cabrita de Oliveira (1947-) fez parte da DGS entre 1971 e 1974, trabalhando sobretudo no controlo das fronteiras no Aeroporto de Faro, como pretendia. Ingressou na polícia depois de ter cumprido o serviço militar, que terminou mais cedo que o previsto devido a doença, como enfermeiro nos hospitais do Exército na Estrela e em Campolide, onde observou o sofrimento dos feridos vindos de África (de acordo com o relato de Oliveira, essa experiência pouco ou nada teve a ver com o que lhe aconteceu mais tarde).

Oliveira nega ter conhecido ou participado em quaisquer actos de violência e crueldade contra presos políticos, reafirmando a sua inocência. De resto, “muitos de nós, os mais novatos, não estávamos politizados ao ponto de defendermos, em consciência, um regime político-ideológico tipo fascista. Falo por mim que sinceramente, me considerava um funcionário integrado num organismo público que defendia a Nação.” (pp. 107-108) Além do trabalho no aeroporto, onde conheceu gente famosa, Oliveira conta ter desempenhado missões como a segurança de ministros em visita ao Algarve ou a investigação do roubo numa pedreira de explosivos que terão sido usados no atentado da ARA contra postes de alta tensão em 9 de Agosto de 1972.

Além de reproduzir artigos da revista Continuidade e publicar as suas incursões na poesia, o autor narra o que viveu depois dos dias 25 e 26 de Abril de 1974, quando em Faro os agentes da DGS, mal informados sobre o golpe militar e alvo de manifestações de ódio, admitiam ainda continuar a trabalhar para o Estado noutro organismo. A 27, os “pides” são detidos no quartel do Regimento de Infantaria, de onde serão levados para a Cadeia de Faro e, a 3 de Julho, para a Penitenciária de Lisboa. Emídio Oliveira passará cerca de um ano e meio (será libertado em 17-02-76) no estabelecimento prisional da capital, cujo quotidiano relata (neste ponto, as informações de Oliveira podem ser complementadas com as de outro preso, José Luís Pinto de Sá, na obra Conquistadores de Almas). Pelo meio da revolta e das saudades da família que o narrador sente, sucedem-se acontecimentos como o motim de 11 de Agosto de 1974, os piquetes e manifestações junto da prisão, o 28 de Setembro, as exposições dos presos políticos às autoridades militares, o primeiro Natal na Penitenciária, o 11 de Março, a transferência da maioria dos ex-“pides” para Alcoentre e posterior fuga, a publicação da Lei nº 8/75, de 25 de Julho (estabelecendo as penas a cumprir pelos funcionários e informadores da extinta policia política), o receio, a partir de Setembro de 1975, da possível entrada na prisão de grupos armados com o fim de liquidar os detidos, ou o 25 de Novembro, que permitiu a prestação de declarações e saída em liberdade provisória dos antigos membros da DGS. No caso de Oliveira, o processo seria concluído em 1979 com a condenação do autor de Eu Fui Agente da DGS-PIDE a 4 dias de prisão preventiva, já expiada, e a sua reintegração na função pública.

O testemunho de Emídio Oliveira fornece dados relevantes e adiciona uma perspectiva “humana” do fenómeno da justiça política revolucionária, no qual o desejo de punição da PIDE/DGS por parte dos antigos opositores do Estado Novo acabou por colidir com os problemas legais criados pela prisão irregular de milhares de pessoas e a busca da “pacificação” da sociedade portuguesa que emergiu do final do PREC.

sábado, 10 de novembro de 2012

Pão a cozer, menino a ler



Rui Zink (autor de obras publicadas por editoras como Asa, Celta, Europa-América, Dom Quixote, Relógio d’Água, Notícias, Almedina, Porto Editora, Círculo de Leitores, Teorema, Quasi, Planeta ou Teodolito) procura em A Instalação do Medo (Teodolito, 2012) reflectir o “espírito do tempo”, recorrendo a fontes como os jornais e a Internet. Nesta novela (ou romance? Ou peça de teatro? Ou um pouco de tudo?), a linguagem é analisada nos seus componentes essenciais, de forma a enumerar o léxico associado a uma determinada orientação ideológica difundida pelos “agentes do medo” (qualquer corrente política possui, é claro, as suas palavras de estimação). O discurso e os seus efeitos práticos são denunciados por Zink a partir de um registo surreal e por isso mesmo tão realista.

A Instalação do Medo é um livro político (?) de formato prático que nos permite transportá-lo sempre nas nossas malas e gritar passagens em manifestações. Ou então apenas uma exposição do eterno e avassalador poder do medo.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Cresce, torna-se rijo e fica espetado para cima



Renovação (Lourenço Marques), 7 de Novembro de 1968

“Prostrado no seu leito de enfermo, Salazar venceu mais uma crise: Salazar está melhor.
A Nação, porém, em vista dos boletins clínicos, vive ainda momentos pungentes de ansiedade e de comoção. Continua a orar-se, em todos os quadrantes do Império, com a devoção e a confiança que já fizeram o milagre de prolongar a vida a Salazar.
Que Deus o guarde.” (p. 1)

domingo, 4 de novembro de 2012

Tá-se bem, os putos de Belém



A propósito da questão da eventual instrumentalização do desporto, e em especial do futebol, pelo regime de Salazar (à qual Ricardo Serrado regressa num novo livro, O Estado Novo e o Futebol, editado pela Prime Books), merece comentário o capítulo da obra História de Portugal em Datas (Círculo de Leitores, 1994) sobre o período de 1926-1974, assinado por João Paulo Avelãs Nunes. Numa entrada sobre a data de 3 de Dezembro de 1933, o historiador coimbrão escreve:

“Marcando de forma “espectacular” o encerramento do Congresso dos Clubes Desportivos e o esforço realizado pelo Estado Novo no sentido de assegurar a instrumentalização ideológica do fenómeno desportivo, realiza-se em Lisboa, no Terreiro do Paço, uma “parada desportiva” em homenagem ao presidente do Conselho.” (p. 324)

Promovido pelo jornal Os Sports, o Congresso dos Clubes Desportivos, realizado em Lisboa entre 26 de Novembro e 3 de Dezembro de 1933, serviu para as colectividades representadas expressarem a sua insatisfação com as carências aflitivas de estruturas para a prática do desporto e o inexistente apoio do Estado aos clubes, sujeitos a uma elevada carga fiscal. O documento aprovado pelos congressistas reúne vários pedidos dirigidos ao Governo presidido por Salazar. Uma parada dos atletas de clubes de Lisboa e arredores e dos membros dos cursos de ginástica infantil apoiados por Os Sports irá acompanhar a comissão organizadora do Congresso ao Terreiro do Paço, onde os “votos” da reunião serão apresentados ao Presidente do Conselho. Enquanto os desportistas se reúnem na praça, Raul de Oliveira, director de Os Sports, lê o documento no qual são lembradas as funções sociais e educativas do desporto, considerado essencial para a valorização física dos portugueses, ou como se diz então, o “rejuvenescimento físico da raça”. Para desenvolver a sua actividade de carácter patriótico, os clubes necessitavam, no entanto, do apoio estatal, tanto ao nível da regulamentação como da construção de infra-estruturas. Raul de Oliveira propõe medidas como a criação de um organismo governamental que regule o desporto, a formação por uma Escola Superior de Educação Física de técnicos habilitados a difundir as práticas atléticas pelo país e a construção pelo Estado de equipamentos desportivos, nomeadamente um Estádio Nacional em Lisboa. Em resposta, Salazar dirige-se ao microfone para fazer um dos poucos discursos onde aborda o fenómeno desportivo, considerando a educação física importante para a “formação da pessoa humana”, inclusive a nível moral, e lamentando que muitos jovens das cidades, ao invés de se exercitarem em contacto com a Natureza (por exemplo, praticando desportos náuticos no Tejo), passem o tempo nos cafés a discutir questões de “baixa política”. Por fim, Salazar anuncia à multidão que “teremos em breve o Estádio Nacional” (viria a ser inaugurado em 1944), assistindo depois ao desfile dos desportistas (Os Sports, 4 de Dezembro de 1933).

O episódio revela, mais que uma instrumentalização ideológica do desporto português pelo jovem Estado Novo, a busca pelos dirigentes desportivos de uma nova relação com o poder político, do qual pretendem uma maior intervenção, com vista a resolver as múltiplas dificuldades com que os clubes então se debatem. A parada de atletas seria uma prova da força social e popularidade que o desporto já alcançara em Portugal, justificando maior atenção do Estado. Em troca, o desporto oferecia ao regime uma educação física por este controlada que não só melhorasse a saúde e resistência dos portugueses como lhes ensinasse hábitos de disciplina e integração nos princípios do salazarismo. Assim, “A promessa da construção do Estádio Nacional representou uma espécie de aliança entre o Estado Novo e os dirigentes desportivos, com vista à satisfação de interesses mútuos” (SERRADO, Ricardo, SERRA, Pedro, História do Futebol Português, Uma análise social e cultural, vol. I, Das Origens ao 25 de Abril, Lisboa, Prime Books, 2010, p. 189).