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terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer

Publicado em separata da revista Rumo de Agosto de 1967, o ensaio Juventude de Hoje, Juventude de Sempre foi inspirado ao autor, Marcelo Caetano, por conversas com outras pessoas “inquietas e perplexas perante um modo de ser e de agir completamente discordante dos padrões tradicionais da vida familiar e social” (p. 5), manifestado pelos jovens dos anos 60, e pela longa experiência de professor universitário que colocou Caetano perante centenas de alunos que o académico procura compreender. O texto do futuro Presidente do Conselho visa compreender a juventude actual de uma forma global, indo além do caso português, onde os novos fenómenos costumam chegar tarde e com dimensão reduzida.

A rebeldia dos indivíduos nascidos depois da II Guerra Mundial é em parte explicável, segundo Caetano, por “factores constantes” (p. 6) presentes na juventude de todas as épocas, como o idealismo, a irreverência e a necessidade de afirmação. Existem, porém, várias características próprias do século XX, onde se passou “de um Mundo velho para um Mundo novo” (p. 9), que contribuem para a agitação juvenil do presente. O progresso da ciência e a explosão da tecnologia alteraram a vida e o conhecimento, sendo as contínuas inovações melhor aceites e compreendidas pelos jovens que por aqueles que, como Caetano, nasceram no início de Novecentos. A sociedade agrícola, regida pelas normas imutáveis da Natureza e tendente ao conservadorismo, deu lugar a uma “civilização mecânica, urbana e cosmopolita” (p. 11), onde a mudança surge como possível e desejável. Para desagrado de Caetano, as novas ideias sobre educação tornam-na menos rígida e exigente, enquanto uma vulgarização das teorias freudianas leva ao objectivo de “reduzir ao mínimo os constrangimentos” (p. 13), sejam sociais, morais ou religiosos. 

Simultaneamente, num processo que partiu do Norte para se estender recentemente ao Sul da Europa, verifica-se a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho e nos estabelecimentos escolares, com o consequente afastamento da tutela familiar. O vestuário uniformiza-se de modo a aproximar mulheres e homens, mantendo estes apenas a barba como “derradeiro refúgio da dignidade máscula” (p. 15). Habitualmente guardiã da tradição, a mulher torna-se um factor de subversão dos costumes. O declínio das restrições, a influência dos media e a maior convivência de rapazes e raparigas conduzem a novas relações entre os sexos. Passando cada vez mais tempo fora de casa, na escola e em espaços de convívio, os jovens libertam-se do controlo da família e assumem-se como grupo distinto dos restantes (“A juventude tende a deixar de ser uma idade para ser concebida como uma classe”, p. 18). O desejo de agrupamento favorece a adesão à cultura de massas, expressa no culto dos ídolos do desporto (a função educativa deste é prejudicada pelo clubismo e pelo “vício do espectáculo desportivo”), do cinema e da música. Neste caso, Caetano não leva muito a sério as manifestações de histeria associadas ao sucesso do “yé-yé”.

Identificadas as causas dos comportamentos dos jovens de 1967 que chocam os mais velhos, Marcelo Caetano termina confiante no futuro: “Não vamos alarmar-nos por ver a mocidade seguir rumos diversos daqueles que considerávamos seguros e certos” (p. 20). Apesar dos desvios que a juventude possa sofrer, no momento próprio ela assumirá as suas responsabilidades e a experiência levará a que compreenda os “valores essenciais da humanidade” (p. 21), eternos e vencedores de agitações passageiras. Recusando “acreditar na vitória do erro” (p. 21), o professor garante a sobrevivência dos princípios legados pelo passado. Caetano parece não se aperceber das transformações políticas e ideológicas que as mudanças sociais implicam num país como Portugal. Na verdade, a partir de 1968, numerosos jovens serão mobilizados pelo movimento estudantil e por múltiplas organizações de esquerda contra o sistema que Caetano representa. A ânsia de mudança da nova geração não aceitaria uma ditadura construída com base no “viver habitualmente” e no “a cada um o seu lugar”.

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