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sábado, 31 de agosto de 2013

Um golo contra a ansiedade

A vida de António Fernandes Roquete (Salvaterra de Magos, 08.08.1906 – Lisboa, 18.12.1995) foi marcada pela ocupação de posições de destaque em vários meios e períodos, tal como por contradições que reforçam a singularidade do percurso do indivíduo em questão.

António Roquete tornou-se em 1917 aluno da Casa Pia de Lisboa, instituição onde frequentou os cursos comercial e de sargentos milicianos e revelou grandes capacidades para o desporto, nomeadamente nas modalidades de futebol e natação. Como guarda-redes, depois de representar a Casa Pia nas competições escolares lisboetas de futebol, ingressou em 1924 na equipa principal do Casa Pia Atlético Clube. Foi na baliza que se distinguiu como um dos melhores futebolistas portugueses do seu tempo, obtendo igualmente êxitos na natação, onde o casapiano se sagrou campeão de Lisboa na distância de 200 metros bruços. Praticou igualmente pólo aquático (designado na altura em Portugal por water-polo), ao serviço do CPAC, e basebol, quando se verificaram várias experiências desta modalidade na Casa Pia.

Frequentemente convocado para selecções de Lisboa envolvidas em jogos inter-regionais ou internacionais, Roquete foi por 16 vezes (entre 1926 e 1933) o guarda-redes da selecção nacional de futebol. Nessa condição, esteve presente nos Jogos Olímpicos de Amesterdão (1928), onde o misto português alcançou os quartos-de-final do torneio de futebol, um feito vivido intensamente em Portugal por centenas de milhares de pessoas que se reuniram em Lisboa, Porto e outras cidades do país para acompanhar os três jogos disputados pela equipa lusa e, aquando do regresso da comitiva portuguesa, acolheram em festa os jogadores. Neste contexto de massificação do futebol, Roquete é um exemplo dos primeiros “heróis desportivos” portugueses, sendo os seus “feitos” observados por crescentes multidões que se deslocam aos recintos de jogo e transmitidos em texto e imagem pela imprensa à escala nacional. Apesar do CPAC, cuja área de recrutamento se limita à comunidade casapiana, se revelar progressivamente incapaz de competir com os seus rivais lisboetas, as qualidades desportivas de Roquete tornam-no uma das mais populares figuras do futebol português, oficialmente amador.

Cerca de 1929, António Roquete entrou para a Polícia Internacional (criada pelo Decreto nº 15 884, de 24 de Agosto de 1928), uma força dedicada ao controlo das fronteiras nacionais que, em 1931, ganharia funções abertamente políticas e ficaria sob o comando do capitão Agostinho Lourenço. Lourenço seria igualmente o director da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), formada em 1933 a partir da fusão da então Polícia Internacional Portuguesa com outros organismos criados pela Ditadura Militar com o fim de combater os opositores desta. Entre 1931 e 1934, Roquete passa pelos postos fronteiriços da PIP/PVDE em Marvão, Elvas e Valença. Além de chefiar estes últimos dois postos, mantém a actividade futebolística ao jogar pelos clubes Sport Lisboa e Elvas e Sport Clube Valenciano, que disputam desafios (aos quais a presença do “internacional” português ajuda a atrair público) com colectividades vizinhas dos dois lados da fronteira. O trabalho do agente de 1ª classe António Roquete na vigilância da fronteira impressiona Agostinho Lourenço, o que vale ao casapiano vários louvores (Roquete é considerado inocente das acusações, não especificadas nas ordens de serviço da PVDE, que lhe são feitas por um subordinado, depois expulso da polícia política) e a promoção, em Dezembro de 1934, a inspector de fronteira. Em 1935, Roquete lidera a nova Inspecção da PVDE, em Coimbra, antes de voltar a Lisboa (será mais tarde transferido para a Delegação do Porto, antes de se fixar na sede da corporação), onde, no início de 1936, termina no Casa Pia a carreira de futebolista, quando é considerado pela crítica o melhor guarda-redes português de sempre (estatuto que perderia nas décadas seguintes, devido ao surgimento de novos valores). A sua ascensão na polícia política prossegue, confiando-lhe Lourenço a liderança de uma brigada que, em 1939, se desloca a Moçambique, numa missão relacionada com a iminente visita à colónia do Presidente da República, Óscar Carmona O nome de António Roquete será associado pela oposição ao Estado Novo a dois acontecimentos ocorridos em 1942: a prisão e espancamento do jornalista e treinador Cândido de Oliveira (amigo e protector de Roquete) e o assassinato do médico comunista António Carlos Ferreira Soares. No entanto, permanece incerto o papel que Roquete teve (ou não) nessas duas acções repressivas da PVDE.

Uma portaria do Ministério das Colónias de 29 de Maio de 1945 nomeia Roquete para o cargo (ainda vago dois anos depois da sua criação) de chefe de secção do quadro eventual do Corpo de Polícia de Moçambique, do qual tomará posse ao chegar a Lourenço Marques em Setembro de 1947. Dentro do Corpo de Polícia, os funcionários do quadro eventual (convertido pelo Decreto nº 38 043, de 8 de Novembro de 1950, na Polícia Internacional, onde Roquete assume o cargo de adjunto, com funções idênticas às anteriores) encontravam-se encarregues da vigilância das fronteiras moçambicanas e da repressão da oposição ao salazarismo na colónia. Durante treze anos, Roquete irá dirigir o combate, com técnicas semelhantes às utilizadas na Metrópole, a grupos como advogados ligados à oposição republicana, ex-militantes do Partido Comunista Português estabelecidos em Moçambique e jovens que constituirão o embrião do nacionalismo moçambicano. As eleições presidenciais de 1949 e 1958 são duas das ocasiões onde a contestação ao regime é visível, especialmente em Lourenço Marques. No ano de 1960, quando a vinda de meios e pessoal de Lisboa permite o estabelecimento efectivo de uma delegação da PIDE em Moçambique autónoma da polícia local, Roquete aposenta-se do serviço público, alegando doença, e torna-se chefe de segurança do Banco Nacional Ultramarino em Lourenço Marques. Poucos anos depois, o casapiano ingressa nos quadros de uma empresa controlada pelo BNU, a Caju Industrial de Moçambique, dedicada à industrialização e comercialização de castanha de caju, uma actividade económica então em plena expansão no território. Entretanto, Roquete participa no associativismo dos casapianos residentes na colónia e acompanha à distância a vida do CPAC.

Extinta pelo 25 de Abril a polícia política na Metrópole, em Moçambique vivem-se semanas de incerteza até que os antigos membros da PIDE residentes no território são obrigados a apresentar-se às autoridades militares, o que motiva a fuga da maioria para a Rodésia e África do Sul. Ignora-se como Roquete saiu de Moçambique e voltou para Portugal, onde a Comissão de Extinção da PIDE/DGS emitirá um mandado de captura em nome do subinspector António Fernandes Roquete, datado de 3 de Novembro de 1975, sem que existam indícios de uma eventual prisão do visado. Em Janeiro de 1977, Roquete toma conhecimento da ordem de libertação provisória que o submete a várias condições enquanto aguarda julgamento (não sabemos ainda se e quando este se realizou). Nos anos seguintes, as poucas notícias sobre a actividade de Roquete estão geralmente ligadas ao Casa Pia, promotor de uma homenagem pública prestada ao antigo guarda-redes e a outros dois atletas dos primeiros anos do clube em 5 de Outubro de 1995. Dois meses depois, António Roquete, casado (desde 1934), com dois filhos e três netos, morre devido a uma broncopneumonia, sendo enterrado em Salvaterra de Magos.

Apesar dos elogios da crítica jornalística e do público que recebeu no período em que jogou, o facto de Roquete não ter vestido, a não ser episodicamente, a camisola de nenhum dos clubes mais populares e mediáticos do país, como Belenenses, Benfica, FC Porto ou Sporting, reduziu a presença do seu nome na memória futebolística durante as décadas posteriores, sem o apagar, como demonstra o minuto de silêncio em sua homenagem respeitado nas competições nacionais no fim-de-semana seguinte à morte do casapiano. Por outro lado, a participação nas polícias de defesa da Ditadura Militar e do Estado Novo e o contacto com presos políticos inseriram Roquete noutras memórias colectivas, como as do “antifascismo”, da repressão conduzida pelo regime de Salazar ou do início do movimento independentista em Moçambique.

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