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sábado, 17 de novembro de 2012

Conserva inabalável a fé nos destinos do clube



O livro Eu Fui Agente da DGS-PIDE (Ecopy, 2011), de Emídio Oliveira, é especialmente valioso pela raridade, entre os testemunhos existentes de indivíduos visados pelo processo de justiça política na transição para a democracia, de depoimentos escritos por antigos funcionários da polícia política. Emídio José Cabrita de Oliveira (1947-) fez parte da DGS entre 1971 e 1974, trabalhando sobretudo no controlo das fronteiras no Aeroporto de Faro, como pretendia. Ingressou na polícia depois de ter cumprido o serviço militar, que terminou mais cedo que o previsto devido a doença, como enfermeiro nos hospitais do Exército na Estrela e em Campolide, onde observou o sofrimento dos feridos vindos de África (de acordo com o relato de Oliveira, essa experiência pouco ou nada teve a ver com o que lhe aconteceu mais tarde).

Oliveira nega ter conhecido ou participado em quaisquer actos de violência e crueldade contra presos políticos, reafirmando a sua inocência. De resto, “muitos de nós, os mais novatos, não estávamos politizados ao ponto de defendermos, em consciência, um regime político-ideológico tipo fascista. Falo por mim que sinceramente, me considerava um funcionário integrado num organismo público que defendia a Nação.” (pp. 107-108) Além do trabalho no aeroporto, onde conheceu gente famosa, Oliveira conta ter desempenhado missões como a segurança de ministros em visita ao Algarve ou a investigação do roubo numa pedreira de explosivos que terão sido usados no atentado da ARA contra postes de alta tensão em 9 de Agosto de 1972.

Além de reproduzir artigos da revista Continuidade e publicar as suas incursões na poesia, o autor narra o que viveu depois dos dias 25 e 26 de Abril de 1974, quando em Faro os agentes da DGS, mal informados sobre o golpe militar e alvo de manifestações de ódio, admitiam ainda continuar a trabalhar para o Estado noutro organismo. A 27, os “pides” são detidos no quartel do Regimento de Infantaria, de onde serão levados para a Cadeia de Faro e, a 3 de Julho, para a Penitenciária de Lisboa. Emídio Oliveira passará cerca de um ano e meio (será libertado em 17-02-76) no estabelecimento prisional da capital, cujo quotidiano relata (neste ponto, as informações de Oliveira podem ser complementadas com as de outro preso, José Luís Pinto de Sá, na obra Conquistadores de Almas). Pelo meio da revolta e das saudades da família que o narrador sente, sucedem-se acontecimentos como o motim de 11 de Agosto de 1974, os piquetes e manifestações junto da prisão, o 28 de Setembro, as exposições dos presos políticos às autoridades militares, o primeiro Natal na Penitenciária, o 11 de Março, a transferência da maioria dos ex-“pides” para Alcoentre e posterior fuga, a publicação da Lei nº 8/75, de 25 de Julho (estabelecendo as penas a cumprir pelos funcionários e informadores da extinta policia política), o receio, a partir de Setembro de 1975, da possível entrada na prisão de grupos armados com o fim de liquidar os detidos, ou o 25 de Novembro, que permitiu a prestação de declarações e saída em liberdade provisória dos antigos membros da DGS. No caso de Oliveira, o processo seria concluído em 1979 com a condenação do autor de Eu Fui Agente da DGS-PIDE a 4 dias de prisão preventiva, já expiada, e a sua reintegração na função pública.

O testemunho de Emídio Oliveira fornece dados relevantes e adiciona uma perspectiva “humana” do fenómeno da justiça política revolucionária, no qual o desejo de punição da PIDE/DGS por parte dos antigos opositores do Estado Novo acabou por colidir com os problemas legais criados pela prisão irregular de milhares de pessoas e a busca da “pacificação” da sociedade portuguesa que emergiu do final do PREC.

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