A propósito da
questão da eventual instrumentalização do desporto, e em especial do futebol,
pelo regime de Salazar (à qual Ricardo Serrado regressa num novo livro, O Estado Novo e o Futebol, editado pela
Prime Books), merece comentário o capítulo da obra História de Portugal em Datas (Círculo de Leitores, 1994) sobre o
período de 1926-1974, assinado por João Paulo Avelãs Nunes. Numa entrada sobre
a data de 3 de Dezembro de 1933, o historiador coimbrão escreve:
“Marcando de forma
“espectacular” o encerramento do Congresso dos Clubes Desportivos e o esforço
realizado pelo Estado Novo no sentido de assegurar a instrumentalização
ideológica do fenómeno desportivo, realiza-se em Lisboa, no Terreiro do Paço,
uma “parada desportiva” em homenagem ao presidente do Conselho.” (p. 324)
Promovido pelo
jornal Os Sports, o Congresso dos
Clubes Desportivos, realizado em Lisboa entre 26 de Novembro e 3 de Dezembro de
1933, serviu para as colectividades representadas expressarem a sua
insatisfação com as carências aflitivas de estruturas para a prática do
desporto e o inexistente apoio do Estado aos clubes, sujeitos a uma elevada
carga fiscal. O documento aprovado pelos congressistas reúne vários pedidos
dirigidos ao Governo presidido por Salazar. Uma parada dos atletas de clubes de
Lisboa e arredores e dos membros dos cursos de ginástica infantil apoiados por Os Sports irá acompanhar a comissão
organizadora do Congresso ao Terreiro do Paço, onde os “votos” da reunião serão
apresentados ao Presidente do Conselho. Enquanto os desportistas se reúnem na
praça, Raul de Oliveira, director de Os
Sports, lê o documento no qual são lembradas as funções sociais e
educativas do desporto, considerado essencial para a valorização física dos
portugueses, ou como se diz então, o “rejuvenescimento físico da raça”. Para
desenvolver a sua actividade de carácter patriótico, os clubes necessitavam, no
entanto, do apoio estatal, tanto ao nível da regulamentação como da construção
de infra-estruturas. Raul de Oliveira propõe medidas como a criação de um
organismo governamental que regule o desporto, a formação por uma Escola
Superior de Educação Física de técnicos habilitados a difundir as práticas
atléticas pelo país e a construção pelo Estado de equipamentos desportivos,
nomeadamente um Estádio Nacional em Lisboa. Em resposta, Salazar dirige-se ao
microfone para fazer um dos poucos discursos onde aborda o fenómeno desportivo,
considerando a educação física importante para a “formação da pessoa humana”,
inclusive a nível moral, e lamentando que muitos jovens das cidades, ao invés
de se exercitarem em contacto com a Natureza (por exemplo, praticando desportos
náuticos no Tejo), passem o tempo nos cafés a discutir questões de “baixa
política”. Por fim, Salazar anuncia à multidão que “teremos em breve o Estádio
Nacional” (viria a ser inaugurado em 1944), assistindo depois ao desfile dos
desportistas (Os Sports, 4 de Dezembro
de 1933).
O episódio revela,
mais que uma instrumentalização ideológica do desporto português pelo jovem
Estado Novo, a busca pelos dirigentes desportivos de uma nova relação com o
poder político, do qual pretendem uma maior intervenção, com vista a resolver
as múltiplas dificuldades com que os clubes então se debatem. A parada de
atletas seria uma prova da força social e popularidade que o desporto já
alcançara em Portugal, justificando maior atenção do Estado. Em troca, o
desporto oferecia ao regime uma educação física por este controlada que não só
melhorasse a saúde e resistência dos portugueses como lhes ensinasse hábitos de
disciplina e integração nos princípios do salazarismo. Assim, “A promessa da
construção do Estádio Nacional representou uma espécie de aliança entre o
Estado Novo e os dirigentes desportivos, com vista à satisfação de interesses mútuos”
(SERRADO, Ricardo, SERRA, Pedro, História
do Futebol Português, Uma análise social e cultural, vol. I, Das Origens ao 25 de Abril, Lisboa, Prime
Books, 2010, p. 189).
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