Encontrar algo útil no meio da tralha é parte essencial do trabalho de um historiador.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Não beijes essa serpente!

A Biblioteca Municipal de Figueiró dos Vinhos tem procedido à recolha e digitalização dos periódicos publicados na vila desde o século XIX. Um dos títulos da imprensa local figueiroense reproduzidos é O Norte do Distrito (1953-1974). O quinzenário intitulava-se “Órgão nacionalista, defensor dos concelhos do Norte do Distrito de Leiria” e pertencia a Ernesto Lacerda e Costa, conservador do Registo Predial e proprietário agrícola. Figura cimeira da elite política de Figueiró (presidindo à Comissão Concelhia da União Nacional), Ernesto de Araújo Lacerda e Costa foi deputado pelo círculo de Leiria à Assembleia Nacional entre 1949 e 1969. O resumo da sua actividade parlamentar pode ser visto aqui e na entrada respectiva do Dicionário Biográfico Parlamentar, 1935-1974, coordenado por Manuel Braga da Cruz e António Costa Pinto. 

O número de 25 de Janeiro de 1974 de O Norte do Distrito dedica a sua primeira página ao falecimento de Ernesto Lacerda, ocorrido dois dias antes. Nascido em Figueiró dos Vinhos a 20 de Fevereiro de 1899, Lacerda era filho de Joaquim de Araújo Lacerda, um importante vulto local, que viria a substituir no cargo de provedor da Santa Casa da Misericórdia figueiroense. “Trazido pela mão segura e experiente de seu pai ao tablado dos dirigentes locais”, Lacerda licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra e ocupou a presidência da Câmara de Figueiró dos Vinhos, além de marcar presença na AN entre a V e a IX Legislaturas. Solteiro e sem filhos, deixou como única herdeira a sua irmã Maria Leonarda, casada com Joaquim Alves Tomaz Morgado, director de O Norte de Distrito e também ele ex-presidente do município e conservador do Registo de Figueiró dos Vinhos.

O obituário dedicado a Ernesto Lacerda relaciona a acção do deputado com “inúmeros e importantes melhoramentos para o concelho”, embora só refira em concreto a sua pressão junto do poder central para que fosse construída a EN 350, entre Figueiró e a ponte da ribeira de Alge. Possuindo relações com “destacados influentes a nível local e regional”, Lacerda não só defendeu os “interesses da colectividade” como apoiou as “pretensões pessoais, justas e legítimas de muitos figueiroenses”, protegendo a ascensão destes “na função pública e nos sectores privados”. A influência de que o deputado dispunha terá criado à sua volta uma rede de fiéis, necessariamente gratos pela protecção recebida. Ernesto Lacerda surge como um exemplo de “cacique” do Estado Novo cujo estudo poderia contribuir para conhecer melhor os poderes locais durante o período da ditadura, pelos menos na região de Leiria. A nível pessoal, testemunhos de conterrâneos (a minha mãe) acusam-no de ser avarento e prepotente, não tendo a sua morte causado especial tristeza entre a população. Entretanto, o jornal que fundou não lhe sobreviveria muito tempo, tendo O Norte do Distrito (acérrimo defensor do Estado Novo e da guerra colonial) publicado o seu último número a 10 de Abril de 1974, vitimado pela mudança súbita da situação política.

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