Encontrar algo útil no meio da tralha é parte essencial do trabalho de um historiador.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O nível mental e moral dos políticos continua a descer



Expresso, 15 de Junho de 1974

“50 Pides de Moçambique no Brasil, Espanha e Inglaterra

Mais de cinquenta elementos da extinta PIDE/DGS que se escaparam pelas fronteiras dos países vizinhos de Moçambique foram autorizados a embarcar para o Brasil, Espanha e Inglaterra.
A maior parte dos agentes eram funcionários superiores daquela polícia política e tinham possibilidade de emitir passaportes falsos.
Dois elementos da PIDE/DGS que partiram para Londres há dias, de Salisbúria, apresentaram passaportes em nome dos srs. “Visa” e “Vasco da Gama”.” (p. 1)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

As feministas são o contrário dos touros



A propósito das listas de discos e filmes sobre o fim do mundo feitas há poucos dias, cumpre lembrar o cenário apocalíptico traçado em 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte (1978), o célebre álbum de rock progressivo de José Cid. Nas duas primeiras faixas do trabalho, O Último Dia na Terra e O Caos, as letras falam de “guerras nucleares, poluição” como causas de uma situação em que, sem ar nem luz, “o planeta Terra já não pode mais viver”. A inacção das pessoas perante o desastre que se avizinhava (“não se ouviu um grito, não se fez um gesto”) levou à destruição do planeta, do qual poucos conseguem fugir em naves para o espaço. Só 10 mil anos depois a Terra voltará a ser habitável, permitindo “recomeçar outra civilização”.

O fim e recomeço do mundo imaginados por José Cid integram um álbum espantoso que, apesar do escasso êxito comercial em 1978, veio a ser reconhecido pelos apreciadores de rock progressivo a nível internacional. Nos espectáculos, Cid e a sua banda interpretam por vezes Mellotron, o Planeta Fantástico, a quarta faixa de 10.000 Anos… O estatuto de culto obtido pelo disco leva a que os fãs de Cid reclamem frequentemente um regresso do músico ao rock progressivo, em que não se voltou a aventurar depois dos anos 70. Na verdade, o cantor ribatejano já anunciou várias vezes um projecto no género sinfónico intitulado Vozes do Além, no qual, com outros músicos, Cid trataria o tema da vida para além da morte e da reencarnação, a partir de poemas de Natália Correia e Sophia de Mello Breyner Andresen. Um Dia, escrito por esta última, foi musicado, como balada, por Cid no CD Quem Tem Medo de Baladas (2011). No entanto, o anunciado Vozes do Além continua por concretizar, impondo-se para já na agenda de Cid o álbum actualmente em gravação Menino Prodígio. Sem querer criticar os últimos discos gravados por José Cid, quando acontecerá o tão esperado regresso ao rock progressivo?

Entretanto, também em registos mais alternativos, não deve ser esquecido o segundo LP do Quarteto 1111, datado de 1975 e chamado Onde, Quando, Como, Porquê, Cantamos Pessoas Vivas (editado no formato CD em 2008). Essa “Obra-Ensaio de José Cid”, dividida nas partes mencionadas no título, reflecte o ambiente de esperança vivido nos primeiros meses depois do 25 de Abril, além de possuir acentuada qualidade poética e, na opinião do compositor, ser mais original relativamente ao que se fazia lá fora que 10.000 Anos Entre Vénus e Marte. Por sua vez, o EP de José Cid Vida (Sons do Quotidiano), de 1977, permanece inédito em CD.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Bendito sábado chuvoso passado na Biblioteca Nacional



Um pouco de umbiguismo:

O site (ainda em construção) do Centro de História do Futebol e do Desporto, alojado no portal Football Dream, divulga os objectivos da unidade de investigação liderada por Ricardo Serrado, a obra já produzida pelo CHFD e os projectos a desenvolver, como um curso livre em torno da história e filosofia do desporto. Outra actividade em curso é a reunião de um acervo (composto por livros, revistas, folhetos e outros materiais) sobre história do desporto, destinado à consulta dos investigadores que analisem o tema. As caixas de comentários deste blogue estão abertas a contactos de quaisquer pessoas ou entidades interessadas em estabelecer parcerias com o CHFD.

No campo da banda desenhada, o site Central Comics está a assinalar o seu aniversário promovendo o Troféu “Heróis da Década”, que visa premiar as melhores obras da BD publicada em Portugal entre 2001 e 2012. O argumentista Fernando Dordio Campos, da série C.A.O.S., está nomeado na categoria de Melhor Argumentista Nacional, além do primeiro número de C.A.O.S. ser um dos candidatos ao prémio de Melhor Publicação Independente. A concorrência entre os nomes sujeitos à votação, que se prolonga até 31 de Janeiro, é muito forte, mas a selecção feita pela Central Comics constitui o reconhecimento da qualidade do trabalho de um dos maiores autores actuais da BD portuguesa (seria igualmente justa a presença de Osvaldo Medina nos nomeados para Melhor Artista Nacional).

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Um político que promete corrupção



Em entrevista ao Diário de Notícias publicada a 17 de Dezembro, o jornalista Luís Miguel Pereira recorda que “Quando ia a Inglaterra, sobretudo em reportagem, apercebia-me de que havia um mercado imenso de livros de futebol e fazia-me um pouco de confusão não existir esse mercado em Portugal, à sua dimensão.” (p. 50) Compreendendo a lacuna, Pereira produziu em 2002 livros sobre Jardel e Laszlo Bölöni, assim como um Dicionário do Futebol (edições da Booktree), que tiveram grande sucesso e abriram um mercado por explorar. No ano seguinte, Estórias d’Alvalade, uma recolha de depoimentos organizada por Pereira sobre o estádio sportinguista inaugurado em 1956, foi a primeira obra publicada pela Prime Books, a editora que acolheria os livros seguintes do jornalista da SportTV. Até hoje (o mais recente, Missão Benfica, sobre a presidência de Luís Filipe Vieira, foi posto à venda no mês passado), Luís Miguel Pereira lançou em Portugal 25 livros, a que se somam as obras editadas em Espanha, Brasil, Inglaterra, Coreia do Sul, Japão e Polónia. 

Embora quantidade não seja o mesmo que qualidade, a descoberta por Luís Miguel Pereira do filão inexplorado em Portugal dos livros sobre futebol (antes de 2002, obras do género, além de manuais técnicos, eram lançadas esporadicamente, mas os editores ainda não se tinham apercebido do potencial comercial do tema) abriu portas a uma ampla actividade editorial. A Prime Books e outras chancelas (Quidnovi, Zebra, Casa das Letras, Oficina do Livro, Livros d’Hoje, etc.), estimuladas por fenómenos mediáticos como Cristiano Ronaldo e José Mourinho, publicaram muitas obras de análise do beautiful game, escritas sobretudo por jornalistas. No entanto, o interesse comprovado do público pelos livros sobre futebol favoreceu o aparecimento e publicação de investigação académica acerca da história e sociologia do desporto-rei, com os consequentes avanços no estudo deste.

Voltando a Luís Miguel Pereira, além dos seus trabalhos jornalísticos dedicados a treinadores e futebolistas (curiosamente, na entrevista atrás citada, Pereira afirma manter algum distanciamento nas relações pessoais com os protagonistas do futebol, em parte devido às reservas destes, o que contrasta com o caso de outro jornalista desportivo, João Malheiro), criou conceitos editoriais de sucesso como a série Caretas (em colaboração com os cartoonistas Ricardo Galvão, Carlos Laranjeira e Pedro Ribeiro Ferreira) e as Bíblias, onde aos “grandes” portugueses se seguiram clubes e selecções de Brasil e Espanha, com Pereira a desenvolver compilações de factos desportivos especificamente direccionadas a esses mercados. O reconhecimento obtido levou o jornalista ao Programa do Jô, numa projecção mediática que Pereira se queixa de não receber nos media portugueses. Independentemente da apreciação dos seus pares, Luís Miguel Pereira soma êxitos de vendas e contribui para enriquecer a agora vasta bibliografia portuguesa sobre futebol e desporto em geral.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Arrumar carros é que está a dar



Na sua edição de ontem, o Público inclui na secção Pessoas (sobre as vidas das celebridades), como é hábito, a coluna “Hoje Fazem Anos”, listando várias figuras aniversariantes portuguesas e estrangeiras e as respectivas idades. Além de personalidades como Carla Sacramento e Fábio Rochemback, a lista de 10 de Dezembro inclui “Michael Clarke Duncan, actor, 55” (p. 35). De facto, o actor americano, que participou em filmes como The Green Mile e Falsas Aparências, nasceu em 10 de Dezembro de 1957. O problema é que Duncan morreu no passado dia 3 de Setembro. A coluna de aniversários é provavelmente feita pelo jornal de forma anónima e automática, por isso talvez o erro fosse compreensível, mas no número de hoje o Público não apresenta qualquer referência à falha (correcções de gralhas e inexactidões costumam surgir no espaço de opinião, em “O Público Errou”). Possivelmente ninguém reparou no lapso de considerar Duncan ainda vivo. São pormenores que ajudam a prejudicar a imagem do jornal de Bárbara Reis.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Ele até comeria um comunista



O clássico humorístico As Lições do Tonecas (Livrolândia, 1988), de José de Oliveira Cosme, reúne diálogos representados no Rádio Clube Português nas décadas de 30 e 40, que depois inspirariam a série televisiva com Luís Aleluia e Morais e Castro (a RTP promoveu outras adaptações de antigos programas cómicos de rádio, como Zequinha e Lelé e Patilhas e Ventoinha, sem o mesmo sucesso). A obra de Oliveira Cosme, figura importante da rádio, banda desenhada e literatura infantil portuguesas do século XX, baseia-se sobretudo no desenvolvimento do trocadilho, com algumas referências à realidade social da época. No caso do futebol, encontra-se o seguinte excerto no texto “Uma lição de Geografia” (onde o Professor identifica a Itália como uma monarquia constitucional):

“Professor — (…) Ora, em Espanha, há mais cidades importantes, não há? (…) Zamora, menino! Nunca ouviu falar em Zamora?...
Tonecas — Já sim, senhor professor. Foi o melhor guarda-redes do Mundo…
Professor — Ó menino! Nós não estamos a tratar de futebol… Tratamos de Geografia… Zamora é uma cidade espanhola da província de Leão
Tonecas — E eu também, senhor professor!
Professor — O quê? O menino também é cidade?
Tonecas — Não sou cidade, mas sou “leão” e com muita honra, senhor professor!
Professor — E ele a dar-lhe com o futebol!... Naturalmente, é por isso que o menino dá tantos pontapés na Gramática… (…)” (p. 165)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A estupidez não tem de magoar imediatamente



No dia 25 de Novembro, foi lançado no ambiente opressivo da Fnac Chiado o novo livro de Fernando Rosas, Salazar e o Poder. A Arte de Saber Durar (Tinta da China, 2012), que procura responder a uma questão (apenas) aparentemente simples: porque durou o Estado Novo tantos anos? Para lá de factores como os apoios que Salazar recebeu (da Igreja, das elites económicas, etc.) e a violência preventiva e repressiva, Rosas destaca a relevância da obediência das Forças Armadas ao regime, mesmo nas fases mais difíceis para este. O controlo das chefias militares que Salazar assegurou a partir da década de 30 foi essencial para a estabilidade da ditadura (que cairia por acção dos oficiais intermédios), até porque era precisamente a força armada que faltava às oposições para derrubar o Estado Novo. 

A propósito dos episódios que, durante o lançamento do ensaio, Fernando Rosas e José Pacheco Pereira contaram com o objectivo de retratar a omnipresença do medo no Portugal de Salazar, e tendo em conta quer o desenvolvimento que a literatura autobiográfica (como as obras de memórias editadas pela Alêtheia) conhece actualmente quer a riqueza do percurso político e profissional de Rosas, seria interessante se o historiador resolvesse escrever sobre a sua experiência pessoal, ou pelo menos parte dela. No entanto, a falta de aptidão para a biografia que Rosas confessa na introdução de Salazar e o Poder e a afirmação de Pacheco Pereira segundo a qual a obra do presidente do IHC é uma história não propriamente narrativa mas sobretudo problematizante tornam pouco provável a hipótese de Rosas abordar a sua própria vida como objecto de estudo.

domingo, 18 de novembro de 2012

Lénine já nos pôs nas mãos a chave do problema



Operação Mar Verde (Caminhos Romanos, 2012), de António Vassalo, é um álbum de BD que narra, como o título indica, a operação militar portuguesa de ataque a Conakry em 22 de Novembro de 1970. Alpoim Calvão, o estratega e comandante da operação, é o herói do livro. António Vassalo (que se auto-retrata na p. 4) conheceu Alpoim na Guiné em 1964, embora já tivesse concluído o serviço militar aquando da Operação Mar Verde. A reconstituição desta é feita com base nas memórias de Alpoim e nos testemunhos prestados a Vassalo pelos participantes na acção, que o desenhador (na introdução, Vassalo explica ter desejado desde a infância ser um guerreiro do Império como os heróis da História portuguesa, concretizando o sonho na guerra colonial) considera ter sido um claro sucesso. As 28 pranchas a preto e branco dão um tom épico à luta contra o ditador guineense Sekou Touré, que para frustração de Alpoim permaneceria no poder.

O trabalho de António Vassalo constitui uma nova abordagem da guerra de 1961-1974 pela banda desenhada, onde o conflito africano serviu recentemente de inspiração a Cinzas da Revolta (Asa, 2012), com argumento de Miguel Peres e desenho de João Amaral (Jhion). 

sábado, 17 de novembro de 2012

Conserva inabalável a fé nos destinos do clube



O livro Eu Fui Agente da DGS-PIDE (Ecopy, 2011), de Emídio Oliveira, é especialmente valioso pela raridade, entre os testemunhos existentes de indivíduos visados pelo processo de justiça política na transição para a democracia, de depoimentos escritos por antigos funcionários da polícia política. Emídio José Cabrita de Oliveira (1947-) fez parte da DGS entre 1971 e 1974, trabalhando sobretudo no controlo das fronteiras no Aeroporto de Faro, como pretendia. Ingressou na polícia depois de ter cumprido o serviço militar, que terminou mais cedo que o previsto devido a doença, como enfermeiro nos hospitais do Exército na Estrela e em Campolide, onde observou o sofrimento dos feridos vindos de África (de acordo com o relato de Oliveira, essa experiência pouco ou nada teve a ver com o que lhe aconteceu mais tarde).

Oliveira nega ter conhecido ou participado em quaisquer actos de violência e crueldade contra presos políticos, reafirmando a sua inocência. De resto, “muitos de nós, os mais novatos, não estávamos politizados ao ponto de defendermos, em consciência, um regime político-ideológico tipo fascista. Falo por mim que sinceramente, me considerava um funcionário integrado num organismo público que defendia a Nação.” (pp. 107-108) Além do trabalho no aeroporto, onde conheceu gente famosa, Oliveira conta ter desempenhado missões como a segurança de ministros em visita ao Algarve ou a investigação do roubo numa pedreira de explosivos que terão sido usados no atentado da ARA contra postes de alta tensão em 9 de Agosto de 1972.

Além de reproduzir artigos da revista Continuidade e publicar as suas incursões na poesia, o autor narra o que viveu depois dos dias 25 e 26 de Abril de 1974, quando em Faro os agentes da DGS, mal informados sobre o golpe militar e alvo de manifestações de ódio, admitiam ainda continuar a trabalhar para o Estado noutro organismo. A 27, os “pides” são detidos no quartel do Regimento de Infantaria, de onde serão levados para a Cadeia de Faro e, a 3 de Julho, para a Penitenciária de Lisboa. Emídio Oliveira passará cerca de um ano e meio (será libertado em 17-02-76) no estabelecimento prisional da capital, cujo quotidiano relata (neste ponto, as informações de Oliveira podem ser complementadas com as de outro preso, José Luís Pinto de Sá, na obra Conquistadores de Almas). Pelo meio da revolta e das saudades da família que o narrador sente, sucedem-se acontecimentos como o motim de 11 de Agosto de 1974, os piquetes e manifestações junto da prisão, o 28 de Setembro, as exposições dos presos políticos às autoridades militares, o primeiro Natal na Penitenciária, o 11 de Março, a transferência da maioria dos ex-“pides” para Alcoentre e posterior fuga, a publicação da Lei nº 8/75, de 25 de Julho (estabelecendo as penas a cumprir pelos funcionários e informadores da extinta policia política), o receio, a partir de Setembro de 1975, da possível entrada na prisão de grupos armados com o fim de liquidar os detidos, ou o 25 de Novembro, que permitiu a prestação de declarações e saída em liberdade provisória dos antigos membros da DGS. No caso de Oliveira, o processo seria concluído em 1979 com a condenação do autor de Eu Fui Agente da DGS-PIDE a 4 dias de prisão preventiva, já expiada, e a sua reintegração na função pública.

O testemunho de Emídio Oliveira fornece dados relevantes e adiciona uma perspectiva “humana” do fenómeno da justiça política revolucionária, no qual o desejo de punição da PIDE/DGS por parte dos antigos opositores do Estado Novo acabou por colidir com os problemas legais criados pela prisão irregular de milhares de pessoas e a busca da “pacificação” da sociedade portuguesa que emergiu do final do PREC.

sábado, 10 de novembro de 2012

Pão a cozer, menino a ler



Rui Zink (autor de obras publicadas por editoras como Asa, Celta, Europa-América, Dom Quixote, Relógio d’Água, Notícias, Almedina, Porto Editora, Círculo de Leitores, Teorema, Quasi, Planeta ou Teodolito) procura em A Instalação do Medo (Teodolito, 2012) reflectir o “espírito do tempo”, recorrendo a fontes como os jornais e a Internet. Nesta novela (ou romance? Ou peça de teatro? Ou um pouco de tudo?), a linguagem é analisada nos seus componentes essenciais, de forma a enumerar o léxico associado a uma determinada orientação ideológica difundida pelos “agentes do medo” (qualquer corrente política possui, é claro, as suas palavras de estimação). O discurso e os seus efeitos práticos são denunciados por Zink a partir de um registo surreal e por isso mesmo tão realista.

A Instalação do Medo é um livro político (?) de formato prático que nos permite transportá-lo sempre nas nossas malas e gritar passagens em manifestações. Ou então apenas uma exposição do eterno e avassalador poder do medo.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Cresce, torna-se rijo e fica espetado para cima



Renovação (Lourenço Marques), 7 de Novembro de 1968

“Prostrado no seu leito de enfermo, Salazar venceu mais uma crise: Salazar está melhor.
A Nação, porém, em vista dos boletins clínicos, vive ainda momentos pungentes de ansiedade e de comoção. Continua a orar-se, em todos os quadrantes do Império, com a devoção e a confiança que já fizeram o milagre de prolongar a vida a Salazar.
Que Deus o guarde.” (p. 1)

domingo, 4 de novembro de 2012

Tá-se bem, os putos de Belém



A propósito da questão da eventual instrumentalização do desporto, e em especial do futebol, pelo regime de Salazar (à qual Ricardo Serrado regressa num novo livro, O Estado Novo e o Futebol, editado pela Prime Books), merece comentário o capítulo da obra História de Portugal em Datas (Círculo de Leitores, 1994) sobre o período de 1926-1974, assinado por João Paulo Avelãs Nunes. Numa entrada sobre a data de 3 de Dezembro de 1933, o historiador coimbrão escreve:

“Marcando de forma “espectacular” o encerramento do Congresso dos Clubes Desportivos e o esforço realizado pelo Estado Novo no sentido de assegurar a instrumentalização ideológica do fenómeno desportivo, realiza-se em Lisboa, no Terreiro do Paço, uma “parada desportiva” em homenagem ao presidente do Conselho.” (p. 324)

Promovido pelo jornal Os Sports, o Congresso dos Clubes Desportivos, realizado em Lisboa entre 26 de Novembro e 3 de Dezembro de 1933, serviu para as colectividades representadas expressarem a sua insatisfação com as carências aflitivas de estruturas para a prática do desporto e o inexistente apoio do Estado aos clubes, sujeitos a uma elevada carga fiscal. O documento aprovado pelos congressistas reúne vários pedidos dirigidos ao Governo presidido por Salazar. Uma parada dos atletas de clubes de Lisboa e arredores e dos membros dos cursos de ginástica infantil apoiados por Os Sports irá acompanhar a comissão organizadora do Congresso ao Terreiro do Paço, onde os “votos” da reunião serão apresentados ao Presidente do Conselho. Enquanto os desportistas se reúnem na praça, Raul de Oliveira, director de Os Sports, lê o documento no qual são lembradas as funções sociais e educativas do desporto, considerado essencial para a valorização física dos portugueses, ou como se diz então, o “rejuvenescimento físico da raça”. Para desenvolver a sua actividade de carácter patriótico, os clubes necessitavam, no entanto, do apoio estatal, tanto ao nível da regulamentação como da construção de infra-estruturas. Raul de Oliveira propõe medidas como a criação de um organismo governamental que regule o desporto, a formação por uma Escola Superior de Educação Física de técnicos habilitados a difundir as práticas atléticas pelo país e a construção pelo Estado de equipamentos desportivos, nomeadamente um Estádio Nacional em Lisboa. Em resposta, Salazar dirige-se ao microfone para fazer um dos poucos discursos onde aborda o fenómeno desportivo, considerando a educação física importante para a “formação da pessoa humana”, inclusive a nível moral, e lamentando que muitos jovens das cidades, ao invés de se exercitarem em contacto com a Natureza (por exemplo, praticando desportos náuticos no Tejo), passem o tempo nos cafés a discutir questões de “baixa política”. Por fim, Salazar anuncia à multidão que “teremos em breve o Estádio Nacional” (viria a ser inaugurado em 1944), assistindo depois ao desfile dos desportistas (Os Sports, 4 de Dezembro de 1933).

O episódio revela, mais que uma instrumentalização ideológica do desporto português pelo jovem Estado Novo, a busca pelos dirigentes desportivos de uma nova relação com o poder político, do qual pretendem uma maior intervenção, com vista a resolver as múltiplas dificuldades com que os clubes então se debatem. A parada de atletas seria uma prova da força social e popularidade que o desporto já alcançara em Portugal, justificando maior atenção do Estado. Em troca, o desporto oferecia ao regime uma educação física por este controlada que não só melhorasse a saúde e resistência dos portugueses como lhes ensinasse hábitos de disciplina e integração nos princípios do salazarismo. Assim, “A promessa da construção do Estádio Nacional representou uma espécie de aliança entre o Estado Novo e os dirigentes desportivos, com vista à satisfação de interesses mútuos” (SERRADO, Ricardo, SERRA, Pedro, História do Futebol Português, Uma análise social e cultural, vol. I, Das Origens ao 25 de Abril, Lisboa, Prime Books, 2010, p. 189).

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Calai-vos ou vai tudo raso!



Gabriel Mithá Ribeiro, autor de O Ensino da História (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012), baseia-se na sua experiência como professor de História no ensino básico e secundário (da qual dá vários exemplos no livro, como a sua atitude impiedosa perante a indisciplina dos alunos) para criticar as orientações que os responsáveis do Ministério da Educação têm enviado às escolas. Opositor da corrente pedagógica “progressista” predominante nas últimas décadas, Mithá Ribeiro acredita que “o sistema tem de se tornar tendencial e essencialmente conservador” (p. 98), ou seja, a escola deve transmitir “saberes académicos e científicos sedimentados ao longo da história civilizacional do Ocidente” (p. 36). O professor insurge-se contra o “ensino centrado no aluno” criado pelas “Ciências da Educação” (entre aspas no original), que, dedicando-se apenas aos aspectos didácticos e pedagógicos, falha no essencial, a divulgação do conhecimento. 

Em O Ensino da História e outros livros, Gabriel Mithá Ribeiro reage (trata-se, exactamente, de um “reaccionário”) à prática e pensamento educativos desenvolvidos após o 25 de Abril num contexto de ruptura com aquilo que teria marcado a escola do Estado Novo: a autoridade inflexível e opressora do professor, as aulas meramente expositivas, a valorização excessiva da memorização, a apologia do colonialismo, a diabolização da I República, as sínteses historiográficas sem fontes nem qualquer apelo à iniciativa do aluno presentes em compêndios como os de António Gonçalves Mattoso, o isolamento do ensino em relação à sociedade da qual provêm os estudantes, o trabalho apenas individual, etc. É curioso verificar a quase simetria entre O Ensino da História e Um Rumo para a Educação (Editorial República, 1974), de Vitorino Magalhães Godinho, ministro da Educação e Cultura no II e III Governos Provisórios. Enquanto Godinho se preocupava em abrir a escola ao exterior e promover a ligação com a comunidade, Mithá Ribeiro dá a um capítulo o título “Fechar a porta da sala de aula e o portão da escola” (p. 32). As ideias dos autores sobre o modelo das aulas e a actividade dos alunos também são exactamente opostas.

Sem manifestar saudosismos, Gabriel Mithá Ribeiro pensa que os pedagogos e governantes da democracia levaram a educação portuguesa de um extremo para o outro, descurando a necessidade de equilíbrio. Numa corrente adversária, encontram-se estudiosos como António Teodoro, autor do artigo “Uma escola democrática, inclusiva e exigente” (Público, 22-10-2012, p. 47), que se baseia na investigação das Ciências da Educação (agora sem aspas) para apontar problemas actuais do ensino como “um curriculum escolar ainda organizado em termos de conhecimento disciplinar” e “uma formação de professores centrada num conhecimento disciplinar que subalterniza a construção de saberes práticos”.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Em Portugal qualquer coisa falhou



Um Risco na Areia (Avante, 2000), romance de Manuel Tiago (pseudónimo de Álvaro Cunhal), evoca o ambiente de Setembro de 1974, nomeadamente a oposição do PCP à manifestação da “maioria silenciosa” marcada para dia 28 desse mês (curiosamente, no romance nunca é referido pelo narrador ou pelas personagens o nome de Spínola, designado por “o presidente”, ou de qualquer outro político da época). A partir do centro de trabalho de uma freguesia de Lisboa, é mostrada a actividade incessante dos militantes comunistas, assim como os confrontos físicos entre jovens do PCP e do MRPP (“os emeérres”) e os ataques ao Partido de grupos “fascistas”, que multiplicam agressões e provocações nas vésperas do 28 de Setembro. Literariamente, Um Risco na Areia não possui grande valor, já que, neste romance, Cunhal acaba por dar mais espaço à exposição das suas posições políticas que ao desenvolvimento das personagens, de quem ficamos a saber pouco mais que os nomes.

A bibliografia da obra de Raquel Varela A História do PCP na Revolução dos Cravos (Bertrand, 2011) não inclui o título de Um Risco na Areia, o que se revela uma lacuna (sem pôr em causa a qualidade da tese da autora), tendo em conta o carácter quer de testemunho quer de propaganda que Cunhal fornece à sua reconstituição dos eventos de Setembro de 1974. O romance aponta como uma das actividades mais importantes dos militantes lisboetas o acompanhamento das lutas nas fábricas, onde os operários revoltados constituirão um campo de recrutamento para o PCP. Perante as situações de sabotagem económica, ligadas à preparação do alegado golpe de direita, representantes dos trabalhadores de uma empresa pedem conselho a um dirigente do PCP, recebendo como resposta “pronta e sem hesitar”: “Tomem conta da fábrica e mantenham-na em laboração” (p. 23), solução depois aprovada em plenário da empresa. A autogestão e o controlo operário teriam assim sido incentivados em 1974 pelo partido de Álvaro Cunhal, cuja versão colide com o livro de Raquel Varela (segundo a historiadora, os comunistas privilegiavam então a intervenção estatal em empresas alvo de sabotagem económica, dissuadindo as iniciativas operárias de ocupação das fábricas e auto-organização).

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Dirty minds never sleep



 Diário (Lourenço Marques), 16 de Julho de 1971

“Homenagem do Clube Operário de Futebol ao Prof. Marcello Caetano

Lisboa, 15 (L) – “O Presidente do Conselho, Prof. Marcello Caetano, é o melhor e maior de todos os operários” – afirmou o Governador Civil de Lisboa, na sessão de encerramento das comemorações das “bodas de ouro” do Clube Operário de Futebol, no fim da qual o Chefe do Governo, que é o sócio número 12 da colectividade, foi proclamado sócio honorário.” (p. 4)

sábado, 6 de outubro de 2012

A morte anda em Odivelas



Logo a seguir ao despedimento de Sá Pinto, o material publicitário com a imagem do Ricardo Coração de Leão foi retirado do site do Sporting. Na verdade, a expressão leonina de Sá Pinto é parte importante da campanha publicitária de 2012/13 “Em Frente Sporting”, particularmente do incentivo à compra da Gamebox. Os anúncios e folhetos divulgados há poucas semanas parecem agora datados. Algo de semelhante ocorreu na época anterior, quando o então treinador do SCP Domingos Paciência surgiu, de rosto sereno e confiante, na campanha “O Sporting Está de Volta”, para depois ver a sua passagem pelo clube concluída antes do previsto. Recuando até 2010/11, os postais vendidos na Loja Verde incluíam, além dos jogadores, um com o rosto do treinador, Paulo Sérgio, assim como uma fotografia de conjunto do plantel e equipa técnica com o presidente José Eduardo Bettencourt (os responsáveis pelos postais evitariam mais tarde arriscar com Domingos e Sá Pinto). O marketing do SCP tem sido, assim, expressão de esperanças que invariavelmente se frustram e acabam com responsáveis de outros clubes a defenderem que o futebol português precisa de um Sporting forte.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O apetite do imperialismo é enorme



Numa fase em que aposta na expansão e diversificação das suas actividades, o Centro de História do Futebol e do Desporto apresenta-se e abre-se a novos projectos e colaborações. Recordo o que escrevi aqui há dois anos (entretanto, o livro Cosme Damião – O Homem que Sonhou o Benfica, de Ricardo Serrado, foi publicado pela Zebra, com amplo sucesso comercial):

“O Centro de História do Futebol e do Desporto (CHFD) é uma associação fundada em Setembro de 2008 com sede em Lisboa que tem por objectivo o estudo historiográfico do fenómeno desportivo, especialmente do futebol, visando combater a escassez de abordagens deste pela investigação académica portuguesa. Dirigido pelo historiador Ricardo Serrado, o CHFD, aberto a parcerias com entidades públicas ou privadas, tem reunido uma vasta biblioteca de temática desportiva, incluindo periódicos especializados. As duas primeiras obras produzidas pelo CHFD foram História do Futebol Português, Uma análise social e cultural, em dois volumes (Prime Books, 2010), e uma biografia de Cosme Damião (no prelo).”

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Um safanão a tempo nestes rapazes



No suplemento Atual do Expresso de 22 de Setembro, Pedro Mexia assina uma crítica ao novo livro de Mário de Carvalho, O Varandim seguido de Ocaso em Carvangel (Porto Editora, 2012). Apreciador da escrita de Carvalho, Mexia atribui quatro estrelas (mantém-se polémica a classificação da qualidade dos livros pela crítica com um valor numérico, já abandonada pela revista Ler) às duas novelas reunidas no volume. No entanto, o recenseador poderia ter evitado revelar, no seu resumo das narrativas, os finais de cada uma delas. Quando encontrei a crítica, já tinha acabado a leitura de O Varandim seguido de Ocaso em Carvangel, mas o que terá acontecido àqueles que se interessam pela obra de Carvalho e contactaram com a prosa de Mexia antes de comprarem e lerem o livro recenseado? A opção dispensável de Mexia prejudicou os leitores desprevenidos. Se o objecto de análise fosse um filme, dificilmente o crítico revelaria o desfecho do argumento e, caso fosse necessário, pelo menos recorreria à expressão “Spoiler” antes de abordar o assunto. Nas referidas novelas de Mário de Carvalho, a conclusão não é algo do género “e viveram felizes para sempre”, beneficiando da capacidade de chocar ou surpreender que o autor tão bem sabe manejar. Se quiserem saber como terminam O Varandim e Ocaso em Carvangel, leiam a obra, não perguntem a Pedro Mexia.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

No meio da emoção electrificada do terceiro anel



Jornal da Mocidade Portuguesa de Moçambique, nº 15, Abril-Maio de 1949

Bruno dos Reis, “Pensamentos”

“ (…) “Nós somos assim”, escreveu um judeu ainda jovem (Rui Knopfli), que vivia em Dezembro de 1948 na Palestina. Falou da beleza do sacrifício dos seus irmãos de ideias, e não de ideais, porque esses deixaram de possuir uma existência verdadeira.
Sim. Porque o jovem judeu ao escrever aquelas linhas, possuído da convicção de que elas eram verdadeiras, enganou-se a si próprio e a muitos como ele, jovens também, que pensam emocionalmente, mas não aqueles que meditam com inteligência. Porque estes, sabem que existe uma elevada percentagem de judeus que preferem continuar a amealhar, a pegar em armas em defesa de ideais que para eles não existem. Porque, para eles, apenas existe a ideia do dinheiro. E quem possui amarras económicas não pode de forma alguma possuir ideais, sejam eles de que natureza forem.
Esta é a verdade. E é-me bastante doloroso verificar que um jovem judeu – eu supunha-o e continuo a supô-lo inteligente, caso contrário não perderia tempo a pensar naquilo que ele escreveu – possa acreditar numa possível unidade dos judeus seus irmãos.
Era preferível que afirmasse: “Nós os judeus estamos condenados a morrer judeus…” (…)” (p. 16)

(No nº 16, de Julho-Agosto de 1949, Rui Knopfli responde no artigo “Carta aberta ao Sr. Reis”)

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Todos temos que fazer a nossa arte



Diário de Lisboa, 28 de Maio de 1944

“Fugiram dois presos das obras do Estádio

Das obras do Estádio Nacional, evadiram-se os reclusos da cadeia de Caxias Agnelo Carlos Pereira ou Agnelo Pereira Carlos, natural de Lisboa, solteiro, tanoeiro, e António Emílio, natural de Vila Nova de Ródão, solteiro, empregado no comércio. O primeiro, condenado no Tribunal Militar Especial, cumpria pena maior, e o segundo, pena correccional.” (p. 2)

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Porque camandro é que não se fala nisto?



Em 1995, quando a TVI (entre a saída do projecto da Igreja Católica e a chegada de José Eduardo Moniz) estava meio à deriva, o quarto canal exibiu uma versão televisiva do jogo de tabuleiro Cluedo, já adaptado ao pequeno ecrã em França e Inglaterra. O programa semanal, realizado por João Canijo e Miguel Queiroga, combinava ficção e concurso, contando no elenco fixo com actores como Vítor Norte, João Lagarto e Margarida Marinho. Lembro-me que Cluedo começava por um filme (rodado por Canijo?) que introduzia na mansão a vítima da semana e mostrava as suas relações conflituosas com as personagens, que conduziam a num crime misterioso. Seguia-se o concurso propriamente dito, apresentado por Rogério Samora, no qual os concorrentes tentavam descobrir quem, onde e como tinha sido cometido o assassínio, através de perguntas às personagens, presentes no estúdio, ou da observação das investigações do inspector Barrosão (Guilherme Filipe). Eu gostava do programa, mas, à semelhança das vítimas, Cluedo não teve uma vida longa, sendo cancelado por motivos hoje desconhecidos. Ao nível das audiências, a TVI era então deixada muito para trás por RTP e SIC.

sábado, 8 de setembro de 2012

Hoje é dia de alto risco



Na revista Ler deste mês, José Mário Silva assina uma crónica com o título “São Pedro do Sul” (p. 41), onde desfia as recordações que lhe restam das férias passadas com os avós paternos naquela estância termal, quando Silva tinha “oito ou nove anos” (ou seja, em 1980/81). Sem nunca ter voltado desde então às termas de S. Pedro do Sul, o autor lembra-se, entre outras coisas, do Hotel Vouga e dos outros hóspedes deste (“deviam andar pelos 50, 60 anos, e pareciam-me muito velhos”), das tardes longas, do silêncio, das leituras que fazia (Stevenson, Júlio Verne, Astérix, Michel Vaillant), “do jardim que tinha no centro uma taça circular – cheia de água borbulhante e vapores – de que eu me aproximava a medo” ou dos passeios nas margens do rio.

A crónica de José Mário Silva aborda uma realidade que me é muito familiar, já que passei duas semanas de Agosto em S. Pedro do Sul todos os anos entre 1992 e 2005 (com as excepções de 1993 e 2000). Além do Hotel Vouga, existiam nas termas unidades hoteleiras como o Hotel do Parque, o Hotel Lisboa, a Pensão Avenida e o Inatel reaberto em 1997 após obras. Silva é “incapaz de recordar o edifício onde se faziam os tratamentos”, referindo-se ao velho Balneário Rainha D. Amélia, mas em 1992 já existia um novo edifício (que depois recebeu o nome de D. Afonso Henriques) ao qual os utentes se deslocavam para os tratamentos. A taça circular atrás citada continuava a espalhar um “cheiro fortíssimo, como de enxofre”. Quanto ao perfil etário predominante dos aquistas, mantinha-se basicamente o mesmo do início dos anos 80, por mais que a publicidade das termas estivesse cheia de fotografias de jovens sorridentes. Lembro-me de alguns dos livros que li nas tardes enormes de Agosto (Capitães da Areia, Os Maias, Glória, Se Isto É um Homem, Homens-Aranhas, Morte no Estádio, O Velho que Lia Romances de Amor, etc.), mas a verdade é que não me apetece falar muito sobre as termas sampedrenses. Embora nada tenha contra S. Pedro do Sul, foram Agostos a mais.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Não seja nabo, semeie beterraba


No romance O Teu Rosto Será o Último (Leya, 2012), de João Ricardo Pedro, as frequentes alusões ao desporto servem para fornecer referências temporais e caracterizar as personagens. Em primeiro lugar, surge a paixão pelo Sporting, com figuras de referência como Jesus Correia e Jordão, o sonho dos adeptos com a conquista da Taça dos Campeões Europeus e manchetes sobre os “leões” no Record (não é referido o título de nenhuma outra publicação desportiva). O ciclismo atrai o interesse de vários intervenientes na história, que seguem os feitos de Joaquim Agostinho ou a Volta a Portugal de 1981, quando Manuel Zeferino (FC Porto) chegou ao fim de amarelo. Especificamente sobre futebol, além de um Eusébio, há campos precários criados por iniciativa particular, o golo do holandês Van Basten na final do Campeonato da Europa de 1988 ou “notícias sobre o estado financeiro dos clubes de futebol” (p. 187) em 1991, entre outras marcas do desporto-rei no cenário onde se movem as personagens. Ao longo do percurso do país e dos seus habitantes, o desporto está sempre lá.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O Estoril e Cascais são o centro do penico


As coisas mais datadas podem ser as mais interessantes. No caso do livro Há Vida em Markl: Opus 2 (Gradiva, 2007), que reúne cartoons e textos radiofónicos criados por Nuno Markl entre 2005 e 2007, ler a obra na actualidade realça um novo significado do trabalho do humorista de Benfica produzido nessa época. Mais concretamente, Há Vida em Markl: Opus 2 é o último livro de Nuno Markl “antes de Ana Galvão”, com tudo o que isso representa. E no entanto ela está lá, como colega de Markl na Antena 3, e nos textos da rubrica radiofónica é possível encontrar Galvão, “um doce de pessoa”, a dizer “Salte-me para cima, seu caixa de óculos gostoso.” (p. 72). Também surgem nas páginas da obra alguns prenúncios do que seria a Caderneta de Cromos, como “Mikado” (p. 83) ou a prancha de análise ao anúncio televisivo do Restaurador Olex (p. 118). Quanto a Pimpinha Jardim (pp. 59-61), parece que tudo acabou em bem, já que a filha de Cinha Jardim apareceu recentemente num dos episódios de Felizes para Sempre.

domingo, 12 de agosto de 2012

Manuel recusa ver a filha recém-nascida

Para um crítico de cinema, escrever uma crítica a um filme que se detestou não é tão simples como parece (nunca consegui fazê-lo convenientemente). Limitar-se a dizer que a obra em questão é “um pastelão” ou mesmo “uma merda” cumpre os mínimos, mas não tem a eficácia de um texto divertido no qual, recorrendo a ironia e exagero, o autor acentue a escassez de qualidade do filme. O humor permite mesmo destacar os aspectos ridículos (ou a falta de piada, nas comédias) da fita analisada. Alguém que costuma alcançar com mestria esse objectivo é Pedro Soares, no Royale With Cheese

No número da Sábado de 9 de Agosto, o suplemento Tentações inclui uma crítica de Tiago R. Santos a Pai Infernal, de Sean Anders, com Adam Sandler no papel principal. A classificação adoptada pela revista utiliza uma escala de 1 a 100, com Pai Infernal a ser o primeiro filme a obter na Sábado uma percentagem de apenas 1%. Tiago R. Santos (também argumentista) começa o texto por afirmar: “Adam Sandler detesta-nos. É essa a única explicação. Ele quer fazer-nos sofrer. Mas é ainda pior. Sandler faz questão de destruir as coisas que nos são preciosas. (…)” Mais à frente: “Vale a pena falar de “Pai Infernal”? Querem mesmo saber? Nem sequer leiam o texto. Salvem-se. Salvem-se já. O que é que ganhei a ver o filme? Nada. Menos que zero. Nesse dia, depois da projecção, a comida deixou de ter sabor. (…) O mundo está perdido. (…) A comunidade internacional assiste passiva a estas catástrofes. (…) Se este texto convencer uma única pessoa a não pagar bilhete para este objecto do demónio, o meu sacrifício não terá sido em vão. (…)” (p. 29) A crítica é provavelmente bem mais divertida que o filme em si. Trata-se de um desanque com classe. No mesmo número, o outro crítico de cinema da Sábado, Pedro Marta Santos, atira-se a ATM – Armadilha Mortal, que mesmo assim chega aos 27%, realçando a excepcionalidade de Pai Infernal.

Quanto aos “filmes de Adam Sandler” (um género cinematográfico específico), parece que quem vê um, vê todos. Mais útil será assistir a algum filmes “com” Adam Sandler, não só o óbvio Embriagado de Amor, de Paul Thomas Anderson, mas também Gente Gira, de Judd Apatow (embora a obra pudesse ter sido melhor conseguida), onde Sandler brinca um pouco com a sua própria imagem.

sábado, 11 de agosto de 2012

O Cavaco e a Cavaca amam-se perdidamente

No capítulo 19 do romance Português Suave (Oficina do Livro, 2008), de Margarida Rebelo Pinto (uma das badanas do livro informa que a escritora “nasceu a 7 de Junho em Lisboa”, ignorando o seu ano de nascimento, 1965), a narradora é “uma velha azeda e reaccionária” (p. 213) no fim da vida e com saudades de Salazar. O desencontro com o tempo em que vive passa pela televisão portuguesa:

“ (…) A televisão enjoa-me, é só cantores pimba, como eles agora dizem, novelas pimba, apresentadoras pimba, gente mal vestida e mal instruída, só a Maria Elisa é que se safa, o resto é uma cambada de pindéricas. Já morreram o José Mensurado, o Henrique Mendes, o Fernando Pessa, a Maria Leonor, essa gente do meu tempo que sabia falar e falava bem. (…)” (pp. 212-213)

Embora Português Suave seja datado de 2008 (no final do livro, surge a indicação “Paço d’Arcos, 17 de Maio de 2008”), a lista de personalidades da RTP já falecidas mencionada pela narradora do capítulo 19 inclui o locutor e jornalista José Mensurado, que só viria a morrer em 2 de Dezembro de 2011, como foi noticiado. O facto dos outros nomes estarem correctos reduz as hipóteses da referência a Mensurado se tratar de um sintoma de senilidade da personagem nascida em 1939. Assim, Margarida Rebelo Pinto “matou”, por lapso, José Mensurado quando este ainda se encontrava vivo.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Inexpugnável na torre da sua sapiência económica

Mário Soares já falou (no final do segundo mandato presidencial) sobre as suas preferências quanto a cinema. Além do simbolismo do filme Casablanca e da rejeição da ficção científica, não recordo nada de especial nos gostos cinéfilos do fundador do PS. Relativamente à televisão, Soares e a sua esposa têm dado atenção àquilo que consideram o problema do excesso de violência na ficção e mesmo nos telejornais. Em Um Político Assume-se (Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2011), ao enumerar o que aconteceu no ano de 1993, Soares escreve: “A violência na televisão – e nos filmes americanos – tornou-se quase um hábito, com consequências deploráveis no espírito das crianças e mesmo dos adultos” (pp. 410-411). Maria Barroso e o então Presidente da República procuraram sensibilizar os media para a necessidade de um maior controlo (sem se confundir com censura) dos conteúdos exibidos, mas “A luta pelas audiências foi superior a todos os argumentos…” (p. 412)

É fácil imaginar que a série americana 24, exibida pela RTP2 na década passada, tinha tudo para desagradar a Mário Soares (aspectos artísticos de lado), quer pela abundância de tiroteios e cenas violentas quer pela influência da agenda ideológica da Administração Bush, que passou, nas primeiras temporadas, pela legitimação do uso da tortura (uma questão sensível para Soares) no combate ao terrorismo.

No que respeita a políticos mais jovens, na casa dos 40-50 anos, que cresceram com as séries vindas dos EUA, os gostos em matéria de ficção televisiva não deverão ser muito diferentes dos do resto da população. No entanto, um inquérito sobre o assunto poderia conduzir a conclusões interessantes. Por exemplo, seria útil saber que séries, novelas, telefilmes ou programas humorísticos influenciaram a estratégia política de Miguel Relvas.

sábado, 4 de agosto de 2012

Agora há idiotas eleitos

Apesar da falta de apoios do Estado, este blogue atingiu os dois anos de existência. Só sei que é preciso continuar, continuar sempre.

Prova os clientes que vão ao Tallon

Em 2005, a propósito de uma lista de “momentos televisivos marcantes” que Pedro Mexia elaborou na blogosfera (pode ser consultada no livro de Mexia Prova de Vida, Tinta da China, 2007, pp. 127-128), fiz também uma enumeração de episódios que vi na televisão portuguesa e se destacaram particularmente, por ordem arbitrária:

1. Herman José a destruir o cenário de A Roda da Sorte.
2. Alexandrino apela aos participantes na sua experiência de hipnotismo no Herman SIC que se mantenham firmes e hirtos como uma barra de ferro.
3. As bombas começam a “trovejar sobre Báguedá” (Carlos Fino).
4. Miguel Sousa Tavares, perante a Nova Iorque do 11 de Setembro, comenta na TVI que há uma parte boa no facto de Portugal não ser uma superpotência.
5. Um novo slogan (“Agora Portugal”) surge no cenário do discurso de vitória de Durão Barroso nas autárquicas de 2001.
6. Jorge Gabriel coloca uma iguana viva na cabeça de um concorrente absolutamente apavorado do programa Agora ou Nunca.
7. Miklos Féher morto em campo.
8. Santana Lopes a falar das suas costas “cheias de cicatrizes”.
9. Jerónimo de Sousa sem voz no debate da RTP das legislativas de 2005.
10. João César Monteiro: “Eu quero que o público português se foda”, à saída de uma antestreia no Monumental.
11. Carlos Cruz berra o nome de Dinis Machado (resposta certa à última das 15 perguntas do Quem Quer ser Milionário?).

Não sei que momentos televisivos ocorridos desde 2005 poderiam estar numa nova lista, embora a abundância de frases e situações insólitas nos reality-shows de SIC e TVI, tal como os “Tesourinhos Deprimentes” recolhidos pelos Gato Fedorento, permita obter facilmente exemplos de cenas memoráveis.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Man, esta é de gritos!

O último livro do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Alberto Franco Nogueira (1918-1993), Juízo Final (2ª edição, Civilização, 1993), expressa como o autor encarava, no fim da sua vida e do século XX, a situação do país e do mundo. Combatendo ao serviço de Salazar como ministro entre 1961 e 1969 (e mesmo depois, nas críticas a Marcelo Caetano, que estaria a ameaçar a integridade nacional), Nogueira conhecera desde então sucessivas derrotas: o 25 de Abril, a descolonização, a entrada de Portugal na CEE.

O pensamento que o biógrafo de Salazar expressa de forma coerente em Juízo Final deixa, de facto, a sensação de que Franco Nogueira foi magoado e ultrapassado pelo seu tempo. As ideias “fascistas” de Nogueira incluem posições como a defesa da nação como valor e unidade fundamental, o eurocepticismo radical (quaisquer instituições supranacionais deveriam ser rejeitadas), o culto dos heróis do passado, a recusa do pacifismo (a paz não poderia sobrepor-se aos interesses da comunidade) ou o desprezo pelas elites portuguesas (na concepção de Nogueira, estas incluem sobretudo o poder político-social e os intelectuais), que em momentos de crise ignoram os interesses nacionais e se colocam ao serviço do estrangeiro, copiando ideias alheias devido ao receio excessivo do isolamento (em 1971, durante a guerra colonial, Franco Nogueira expusera no livro As Crises e os Homens as falhas do escol que, perante as ameaças em 1383, 1580 ou no presente, traía o país). Só o povo sentia sempre a pátria e compreendia o que estava em jogo, mas, em 1992, Nogueira observa que os portugueses manifestam “indiferença perante valores nacionais” e caem numa “submissão passiva e inconsciente, e até alegre e eufórica, aos interesses de terceiros” (p. 229), ignorando os perigos que correm.

Não sei se Franco Nogueira gostava de futebol, mas seria curioso conhecer o que o diplomata pensaria da euforia patriótica criada recentemente nos portugueses pela participação da selecção no Europeu, onde, ainda por cima, a equipa lusa enfrentou a Espanha, sempre desejosa, segundo Nogueira, de nos absorver numa Península Ibérica unificada.